Mariângela Cardoso escreveu em homenagem à filha caçula, morta em consequência de um acidente vascular cerebral.
Mariângela Ribeiro Cardoso não é escritora, é mãe. Escreveu muito mais do que um livro — reconstruiu uma história de amor. Laura — A Pequena Gigante é uma homenagem tocante da empresária de 52 anos à caçula, que morreu aos 16 anos, em consequência de um acidente vascular cerebral do tipo hemorrágico, durante uma excursão com amigos a Porto Seguro (BA), há quase três anos.
Mariângela estipulou o desafio meses depois da perda. Angariou coragem para rever centenas de fotos e narrar a trajetória da filha, coletando também depoimentos de amigos, descrições de sonhos e mensagens psicografadas que chegaram até ela, o marido, o empresário Francisco, 56, e os filhos, Gabriel, 27, e Bruno, 24. Teve de respeitar o próprio tempo, aguardar as horas de saudade mais serena e, por vezes, recuar.
O texto se concentra nas brevidades e nos capítulos mais marcantes que compõem o dia a dia familiar: o teste de gravidez, a roupa do batizado, o tema da festa de aniversário de um ano, o vaivém entre o guarda-sol e o mar para encher baldinhos d’água nas férias, a cor da lancheira, a troca de escola. Reconta cinco vidas entre 1993 e 2010. Apesar de descrever a noite de julho em que um telefonema alterou para sempre a rotina que se conhecia até então, Laura – A Pequena Gigante é um relato feliz.
— Aquela menininha nos deixou tanta coisa boa, tantos ensinamentos. Não sei se é um dom meu, mas foco no positivo, no bom — diz Mariângela.
LAURA — A PEQUENA GIGANTE, de Mariângela Ribeiro Cardoso.
Lançamento da editora Evangraf, 256 páginas, R$ 40.
Sessão de autógrafos no dia 8 de junho, a partir das 17h, na Livraria Cultura do Bourbon Shopping Country (Avenida Túlio de Rose, 80), em Porto Alegre.
ENTREVISTA
Donna – Escrever um livro sobre a Laura depois dessa perda tão devastadora deve ter sido muito doloroso, mas também reconfortante.
Mariângela Ribeiro Cardoso – A primeira dificuldade foi me imaginar fazendo um livro. Eu sei ser mãe e empresária, mas escritora, sem grandes estudos e especializações, é difícil. Comecei várias vezes, de diversas formas. Não lembrava de muitos detalhes que gostaria de lembrar para mostrar o quanto a nossa vida era intensa. Tive que me preparar, emocionalmente, uns três, quatro meses, para abrir o baú onde ficam todas as fotos da família. Claro que lembro de tudo, mas quando você olha as fotos, um universo se abre. Você revive tudo. Foi num dia em que não tinha ninguém em casa. Chorei, lembrei, me emocionei. Fechei várias vezes, achando que não iria conseguir. Tive que catalogar tudo, separar por ano, estação. Às vezes, estava com todo aquele pique, a ideia fluindo na mente, mas o coração não aguentava. Foi uma luta com o emocional, com o racional, e saiu. Fiz uma autoterapia. Às vezes eu caía um pouquinho, às vezes ficava eufórica. Revi tudo, enfrentei tudo, não fugi de nada.
Donna – Reafirmar isso proporciona um certo alívio?
Mariângela – Totalmente. Pode ser uma motivação de mãe, mas sempre senti muita energia boa e força quando fazia essas coisas. Hoje mesmo arrumei o cabelo, fui retocar a unha. Sempre visualizo ela me dizendo: “Mãe, te quero bonita”. Aí eu disse: “Ó, Laura, não vou fazer feio” (na entrevista). Estava sozinha, conversando com ela, me vestindo lá no closet. “Filha, você tem que estar comigo.” E vem aquela força. Quero crer que vem dela porque isso só me faz bem, não faz mal nenhum, e numa época em que há tantos jovens morrendo… Como têm morrido jovens, né?
Donna – A tragédia da boate Kiss deve ter abalado muito vocês. Esses episódios reavivam as sensações, não?
Mariângela – Sempre. O que mais dói é o que os pais estão passando naquele momento. É traumatizante, mas não tem como não passar. Tem que viver a sua dor, o seu luto. Quando começaram a chegar os primeiros jovens aos hospitais de Porto Alegre, tive muita vontade de ir lá, conversar com os pais e dar apoio. Mas aí fiquei com medo. Pensei que iria reviver coisas para as quais achava que estava preparada, mas não estava. Eu estaria, talvez, abusando de mim.
Donna – Gabriel, seu filho, é jornalista e assina o prefácio. Diz que admira a sua força e que não teria coragem para mergulhar tão profundamente nessas memórias. Você se acha corajosa?
Mariângela – Tantas pessoas já me disseram que hoje acredito que sou (risos). Até usam um termo de que não gosto, dizem que sou um exemplo. Não quero ser. Não sou vítima, detesto isso. Hoje aceitei a espiritualidade como conforto, me fez muito bem, e sempre procuro pensar que nada é por acaso: a vinda da Laura, do jeito que foi, sem ser programada, a forma que ela viveu… Era para ser para a gente. E nunca questionei. Nunca disse: “Por que comigo? Por que com ela? O que eu fiz de errado para merecer isso?”.
Donna – É muito comum que pais que perdem filhos se dediquem a projetos. Procuram uma causa para defender, buscam um significado. Você acredita que o livro possa ajudar pessoas na mesma situação?
Mariângela – Totalmente. Não queria apavorar os pais, não quero dizer que devam fazer exames neurológicos nos filhos desde que nascem. Não fiz isso com os meus. Eles fizeram exames depois do que aconteceu com a Laura. Mas a ideia do livro foi dizer que existe vida depois disso que a gente passou. Existe uma vida bem intensa, para continuar sendo vivida. A vida tem que continuar do jeito que sempre foi. A gente tem que cair e levantar de novo, como sempre fiz, mesmo antes dessa tragédia. Eu foquei num livro, senti que me faria bem. Nesses momentos, temos que pensar muito na gente e nos que vivem em volta. A mãe, numa família, é o esteio, é o pilar mais reforçado. Me dei conta de que tinha três homens em casa precisando de mim. Se eu caísse, eles cairiam também.
Donna – Como uma família se reestrutura depois de um episódio assim?
Mariângela – É no dia a dia. Nos primeiros momentos, é saber que você ainda respira. Acordar todo dia e tentar seguir a rotina. Não é porque perdi uma filha que andaria só de preto, que andaria só chorando, que as pessoas teriam que me ver como um sofrimento. Não nos afastamos dos amigos. Tínhamos os nossos momentos de sofrimento, de conversar, de chorar junto, mas não mudamos a rotina. Tentamos continuar levando a vida como era antes, como ela nos ensinou e queria que fosse. Esse foi o foco. E a união, né? Os filhos invertem os papéis, começam a ligar para saber como você está, como foi o seu dia. Essa foi a nossa receita.
Donna – Vocês mudaram muito?
Mariângela – A gente se aprimorou. Sempre tivemos muitos valores e o pé no chão, sempre resolvemos as coisas juntos. Meus filhos foram criados assim, com a realidade. E, nesse momento, não poderia ser diferente. O que noto é que as pessoas, às vezes, nos tratam como se fôssemos um vaso quebrado. É a sensação que eu tenho, sabe? Um vaso que se quebrou e hoje deve ser tratado com mais carinho e poupado de algumas coisas. Mas não precisa porque os valores que adquirimos com isso são tão grandes… Sempre valorizamos tudo, mas hoje curto mais uma tarde em casa ou fazer nada no final de semana. Valorizo até acordar, admirar uma flor que nasceu no jardim e que antes eu não olhava. É o dia a dia, e não apenas só vibrar com as conquistas financeiras, as compras. Eu era feliz e hoje sou mais ainda por eles estarem aqui, por eu ter tido a Laura, um ser de tanta luz. Se a gente a mereceu é porque fez algo de bom ou muita coisa tinha que aprender.
Donna – Essa felicidade chegou a causar sensação de culpa? Pareceu impossível conciliar, em algum momento, novas alegrias e a morte da Laura?
Mariângela – Não. No início, achava estranho. Consegui me restabelecer e ficar em pé muito em seguida. Eu me dizia: “Nossa, acabei de perder uma das pessoas que mais amava, uma pessoa que eu amava até mais do que eu. Como posso me arrumar, ter ânimo, sair para trabalhar, viver os dias?”. Nem sei por quanto tempo, mas me questionei bastante. As pessoas não vinham ao nosso encontro porque tinham medo. E eu dizia: “Está tudo bem!”. Acabei consolando quem chegava chorando. Claro que eu, às vezes, também chorava, chorei muito. Mas depois acabei entendendo que eu não era anormal. Anormal seria se eu tivesse me eliminado como pessoa, desistido de viver, se fosse extremamente egoísta. O meu marido e os meus filhos precisavam de mim. O Gabriel, uma vez, quando eu estava realmente entregue, deitada aqui no sofá, disse: “Levanta, mãe. Vem, nós vamos seguir a nossa vida. Todos nós”. E eu disse: “Vou levantar, filho. Mas sabe quando você vai sentir o que estou sentindo? Quando você escutar aquele chorinho. Com o seu filho nascendo, aí você vai entender o tamanho do amor que eu sinto. Você perdeu uma irmã, é uma perda irreparável. Mas perder um filho, isso não existe. Mas vou levantar, prometo.” E levantei.
Donna – É muito difícil se dissociar da imagem de mãe que perdeu um filho? É algo que repercute para sempre, não?
Mariângela – É um rótulo. É para sempre. Somos a família que perdeu uma filha aos 16 anos. Muitas vezes, percebi que as pessoas comentavam: “Ó, aquela ali perdeu a filha”. Mas nunca me preocupei. Eu não tenho esse rótulo. Prefiro que digam: “Aquela é a mãe da Laurinha”. Depois que tem um filho, você deixa de ser você mesmo para ser a mãe de alguém. E não tem como fugir, mas não me preocupo. Não tenho do que me envergonhar. É a minha vida, ninguém está mentindo.
Zero Hora
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